segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Osíris o Ser Bom

Osíris, o Ser Bom




No céu, Rá andava de um lado para outro, espumando de raiva.
— Nut, minha querida filha, como pôde se unir a seu irmão Geb sem pedir meu consentimento? Sem me dizer uma palavra? Como foi capaz de fazer uma coisa dessa? Pois bem! Já que é assim, você nunca terá um filho! Nunca, está ouvindo? Não poderá dar à luz nem no decorrer do mês nem no decorrer do ano.
Rá voltou a subir no seu barco e desapareceu no ocidente, para fazer sua viagem noturna de doze horas. Nut foi tomada por uma tristeza profunda e começou a chorar. Então o deus Tot, calculador do tempo e senhor do calendário, veio encostar sua cabeça de íbis no ombro de Nut.
—Ouvi tudo – ele murmurou com ternura. – Não se preocupe, vou tentar dar um jeito.
Levando o bico fino, curvo e comprido, Tot dirigiu-se à Lua, que era o olho direito de Hórus o falcão divino.
— Você parece meio aborrecida. Quer jogar dados comigo? Tive uma idéia: para o jogo ficar mais interessante, vamos fazer uma aposta. Cada vez que eu ganhar uma partida, você me dará um setenta e dois avos do seu brilho. Se eu perder...
A Lua sorriu. Até então, nunca ninguém tinha conseguido ganhar dela. Pobre Tot, Ela ia depená-lo. Então, como era uma boa princesa, aceitou, para agradar a Tot.
— Tudo bem, aceito o desafio. Vamos jogar. Como sou invencível, não exigirei nada pelas partidas que eu vencer, senão você acabaria perdendo tudo o que tem. Não tenho medo de ninguém.
Os dados rolaram muitas vezes sobre o tapete preto. Tot ganhou a partida e a Lua franziu a testa. Tot ganhou a segunda e a Lua ficou nervosa. Eles jogaram, jogaram, até que o olho esquerdo de Hórus escureceu.
- Vou parar – disse a Lua – Você ganhou de mim cinco vezes seguidas. Chega. Leve os cinco setenta e dois avos do meu brilho a que tem direito.
—Obrigado – disse Tot.
Com o brilho que ganhou, o deus do calendário fez cinco novos dias. Ele os colocou à parte, no final dos doze meses e trinta que formava seu ano egípcio naquela época. Além de aperfeiçoar o tempo, Tot permitiu que Nut escapasse da maldição de Rá. Nut deu a luz sete vezes seguidas.
Osíris veio ao mundo na primeira manhã dos cinco novos dias adicionais. Enquanto ele nacia, ouviu-se uma voz estranha:
— Quem está ao mundo é o senhor das coisas.
No mesmo instante, em Tebas, a cidade de cem portas, um certo Pamiles, que eu tinha ido buscar água no tempo de Amon, parou estarrecido. Embora estivesse sozinho, ouviu uma voz murmurando em seu ouvido. A voz, sem boca nem corpo, ordenou que ele bradasse:
—Acaba de nascer o grande rei, o benfeitor Osíris.
O homem obedeceu, anunciando o feliz acontecimento e voz alto. Então Geb, deus da terra, lhe confiou seu filho. Pamiles encarregou-se de educar Osíris e criou uma festa em sua honra. Nessa festa, cada um engoliria um porco diante de sua porta, e depois as mulheres sairiam em procissão pelas aldeias, tendo à frente um tocador de flauta.
No segundo dia nasceu Haroéris, criança divina com cabeça de falcão.
No terceiro dia, Nut deu um grito de dor. Era Set que estava nascendo. Em vez de nascer pelo caminho natural, ele rasgou violentamente o flanco da mãe para sair por ele.
Nut foi se refugiar num pântano e ficou esperando o dia seguinte com muito medo. Mas Ísis veio ao mundo tranquilamente, do modo mais natural possível. Finalmente, ao amanhecer do último dia adicional, Néftis veio se juntar aos três irmãos e à irmã.
Assim nasceram os cinco filhos da união de Nut e Geb. Rá se enterneceu ao ver seus descendentes e sua cólera se aplacou. Emocionado, ele até verteu algumas lágrimas. Ao caírem no chão, as lágrimas do pássaro-sol se transformaram em abelhas, insetos que produzem a cera e o mel, tão úteis aos homens.
O tempo foi passando. As crianças cresceram. Haroéris, solitário, exilou-se na cidade de Nubit. Set casou-se co Néftis. Osíris e Ísis casaram-se apenas formalmente. Fazia muito tempo que eram apaixonados um pelo outro e na verdade já tinham se unido no ventre de sua mãe.
Rosto fino, pele morena, alto e majestoso, Osíris subiu ao trono. Então tudo mudou na terra do Egito. O rei deu aos egípcios leis sensatas e ensinou-os a venerar os deuses. Ele era inteligente, bondoso e contava sempre com a ajuda da generosa Ísis.
Antigamente os seres humanos viviam como animais selvagens, ou ainda pior, pois devoravam uns aos outros. Com tranqüilidade e firmeza, Osíris fez com que abandonassem esse costume. Ísis descobriu o uso dos cereais, como o trigo e a cevada. Até então, os homens não distinguiam essas plantas das outras e não pensavam em cultiva-as. Osíris incentivou-os a lavrarem a terra para que o trigo crescesse em abundância. Ensinou-os a usas a cevada para alimentar os porcos e as aves e também para fazer cerveja, bebida apreciada por seu sabor e aroma.
Mas não foi só. O rei descobriu a vinha no território de Nisa. Esmagando a uva, saboreou a delícia do vinho e deu a receita aos homens. Revelou aos egípcios que em seu solo havia ouro e outros metais. Mostrou-lhes onde estavam os filões e ensinou-lhes a maneira de trabalhar o bronze, de fazer armas para se defender conta os animais ferozes, de fabricar ferramentas e instrumentos agrícolas, de moldar e fundir estátuas dos deuses.
A rainha Ísis, por sua vez, era estimada por seu senso de justiça. Com seu poder de magia, afastava os demônios e se enfurecia contra quem maltratava as crianças. Era terna e carinhosa. Conseguia estar pr3sente em todos os lugares ao mesmo tempo, cuidando de tudo e de todos. Ensinava as mulheres a moer o trigo, a fazer o pão, a tecer o pano e alvejá-lo.
Tot, o deus com cabeça de íbis, estava sempre ao lado de Osíris e Ísis, ajudando-os a governar. Calcular as horas e os dias era apenas uma de suas habilidades. Foi ele que inventou a escrita e a leitura, ao transformar em sinais as palavras que eram pronunciadas. Registrava nos rolos de papiro os pensamentos que lhe eram confiados, as histórias que ouvia e via, passando todos esses conhecimentos às gerações futuras. Às vezes, ele se despojava de sua plumagem de íbis e assumia a forma de babuíno. Por sua inteligência e seu conhecimento, Tot era venerado pelos sacerdotes e letrados. Era considerado deus da sabedoria e patrono dos escribas.
Certo dia, com um imenso exército, Osíris saiu percorrendo várias regiões da terra, ensinado a seus povos as técnicas da agricultura e revelando as alegrias proporcionadas pelo consumo moderado de vinho. Era uma expedição de paz. Dançarinos e músicos acompanhavam o deus, e por toda parte ele era recebido como benfeitor. Em seu séquito, o rei contava com gente prudente. Tinha como aliados o cão selvagem Anúbis, de cabeça preta e orelhas pontudas, e o lobo Upuaut.
Durante sua ausência, Ísis reinou com muita justiça, vigilante e firme, mantendo as coisas em ordem e harmonia, como Osíris as deixara.
Tudo era felicidade, até que chegou o décimo terceiro dia de um mês de Pert ao longo do qual o olho de Sekhmet podia se enfurecer e lançar terríveis epidemias. O Sol caminhava no céu azul e límpido, mas de repente o vento vermelho do deserto começou a soprar, arrancando as folhas das árvores. Antes tudo era sorrisos e perfeição.  Mas então o Nilo desapareceu e deixou a Terra seca. As noites se alongaram, a luz se enfraqueceu, quase se apagou.
Nascido na terceira manhã dos dias adicionais, Set, de pele branca e cabelos ruivos, permanecera sempre à sombra de Osíris. Ele tinha ciúmes da estima do povo pelo rei, invejava as qualidades do irmão e tinha raiva de não ser o Senhor do Egito. Aliás, o mal se manifestar nele desde seu nascimento, quando havia dilacerado cruelmente o flanco de sua mãe. Finalmente, Set se enfureceu definitivamente quando o povo do Egito passou a chamar Osíris de Unnefer, “o ser bom”, em reconhecimento ao seu empenho na salvação de todos os homens.
Então Osíris voltou, à frente de seu imenso exército, glorificado pelas vitórias pacíficas obtidas em solo estrangeiro. Set o recebeu de braços abertos.
— Estou feliz com sua volta, meu irmão. Para comemorar esse acontecimento, organizei um banquete conforme você merece. Espero-o esta noite em meu palácio.
Set deu um abraço apertado em Osíris, para avaliar disfarçadamente o tamanho do irmão. Ao longo do dia, mandou fazer sob medida uma arca de madeira preciosa, ricamente entalhada.
Osíris foi cumprimentar Ísis, feliz por reencontrá-la. Contou-lhe rapidamente a história sobre os acontecimentos de suas conquistas e perguntou-lhe sobre os acontecimentos sobre nas terras do Egito. Depois dirigiu-se ao palácio de Set. Encontrou no salão de recepção e parou, surpreso. Acompanhando o irmão setenta e dois homens e uma mulher. Com seus olhos de gavião, contou-os num instante.
—Apresento-lhe meus fiéis servidores – disse Set – E esta é Aso, rainha da Etiópia.
Sentaram-se todos em torno da mesa imensa para se banquetear. No meio da refeição, subitamente Set bateu palmas. Na mesma hora alguns criados trouxeram a preciosa arca de madeira. Todos elogiaram o móvel e louvaram a beleza de sua decoração.
Sorrindo, Set prometeu dar a arca a quem, deitando-se dentro dela, ocupasse exatamente todo o seu espaço. Um por um, todos os convivas experimentaram, mas nenhum deles era exatamente do tamanho exato da arca. Finalmente chegou a vez de Osíris. Mas, assim que ele se deitou dentro da arca, os setenta e dois convivas se precipitaram, fecharam e pregaram sua tampa a martelaram e a lacraram com chumbo derretido. Depois a levaram até o Nilo e a jogaram dentro do rio.
Isso aconteceu no dia dezessete do mês Atir, quando o Sol passa sob o signo de escorpião. Osíris reinava vinte e oito anos, e Hapi, o espírito do rio, nem suspeitou que estava levando o corpo do rei para o mar, O Grande Verde.
A notícia do desaparecimento do “ser bom” se espalhou muito depressa por todo o Egito. O terror tomou conta dos homens. Os deuses amigos de Osíris, temendo padecer uma triste sorte, imediatamente se dissimularam sob a forma de animais.
Ísis rasgou suas roupas. Chorou de dor, invocando o testemunho dos céus e cobrindo o rosto de lama. Depois, calou-se, vestiu roupas de luto e cortou uma madeixa de seus cabelos. Seus olhos fitavam o nada. Algumas horas antes seu amado ainda estava a seu lado, de volta de uma longa ausência, glorioso e sorridente. Agora, coma angústia lhe retorcendo o ventre, o coração apertado, Ísis sentia-se enlouquecer, tomada pelo amargura.
Então a rainha saiu à procura de pistas do marido, interrogando viajantes e habitantes das aldeias. As crianças apostavam corrida caminhando de joelhos, com as pernas cruzadas, segurando os pés com as mãos. Ela não teve dificuldade em alcançá-las. Então perguntou:
— Por acaso vocês viram uns homens carregando uma arca?
Uma criança, se levantou e disse:
—  Outra noite, vi uns homens com uma arca imensa. Era muito pesada, eles faziam muita força para carregá-la.
— Como conseguiu enxergá-los no escuro?
— Era noite de lua cheia. A arca era toda decorada. Eles a jogaram lá embaixo, no braço do rio que vai para o Grande Verde, por Tânis. Eu estava brincando aqui fora e vi tudo.
Ísis acariciou o cabelo moreno e cacheado do menino.
— Obrigada. Ah, maldito seja esse braço do Nilo! E benditas sejam as vozes das crianças! O touro Ápis é um excelente adivinho, no entanto quem vem fazer suas preces aos deus e interrogá-lo sobre o futuro recebe a resposta da boca das crianças que brincam e dançam ao  som da flauta.
Ísis deixou as crianças entregues à brincadeira e continuou caminhada, mas agora já não andava ao acaso. Depois que ouvira o menino de cachos morenos, ela via melilotos, a planta de flores amarelas favorita de Osíris, e seu perfume guiava seus passos. Ísis andou por muito tempo. Seu caminho acompanhava o mar e montanhas se erguiam a direita.
Certo dia, um vento divino sussurrou ao seu ouvido. Se, corpo nem lábios, a voz falou:
— Você está no caminho certo. Continue até Biblos, sem perda de tempo. Lá encontrará o que está procurando. As ondas do mar carregaram a arca e a depositaram ao pé de uma Tamargueira. A partir de então, o arbusto de flores cor-de-rosa se desenvolveu com rapidez admirável, envolvendo a arca e dissimulado-a no interior de sua madeira. Maravilhado, Malcandro, rei daquelas terras, ordenou que cortassem o tronco da tamargueira para transformá-lo numa coluna ornamental em seu palácio. Portanto trate de se apressar!
Ísis chegou exausta a Biblos. Chorando, sentou-se perto de uma fonte. Como poderia aproximar-se do rei para falar com ele? Enquanto refletia, passaram as criadas da rainha. Ísis se levantou, aproximou-se delas, cumprimentou-as e ofereceu-se para ajeitar e trançar seus cabelos. Depois de penteá-las, Ísis impregnou o corpo das mulheres com o aroma que se desprendia de seu corpo. Era um perfume divino, composto por dezesseis substâncias, entre as quais mel e vinho, menta e canela, hena e mimosa.
Ao ver suas criadas voltarem com lindos penteados e inebriada pelo perfume que exalavam, a rainha as interrogou. Elas falaram tanto da estrangeira, que a rainha mandou buscar Ísis. Encantada, fez dela sua amiga de verdade e encarregou-a da criação de seu filho caçula.
Ísis cuidou carinhosamente do menino. Amamentava-o pondo-lhe o dedo na boca. À noite, queimava o que havia de mortal em seu corpo. Quando o principezinho adormecia profundamente, Ísis tomava a forma de uma andorinha, ia até o palácio real e, gemendo, voava em torno da coluna ornamental na qual estava Osíris.
Certa noite, tomada pela insônia, a rainha foi até o quarto da criança. Horrorizada, viu saírem chamas do  corpo de seu filho, enquanto Ísis soprava para atiçar o fogo. A mãe, ao invés de se calar, soltou um grito, interrompendo assim a ação benéfica de Ísis.
— O que você está fazendo, desgraçada? E eu que confiava tanto em você...
— Estava fazendo um bem, queimando o que havia de mortal nessa criança. Mas você duvidou de mim, e seu filho não será eterno. Agora veja quem sou.
Ísis assumiu sua aparência de deusa, e a rainha se prosternou:
— O que posso fazer por você? Farei tudo o que ordenar.
— só quero o que está dentro da coluna ornamental do palácio real – foi à resposta.
Honrado coma presença divina, o rei apressou-se em atender ao desejo de Ísis. Então, ela própria rachou o tronco de tamargueira para tirar a arca de dentro dele. Depois, envolveu-o num pano fino, perfumou-o e devolveu ao casal real para que o povo de Biblos venerasse aquele pedaço de madeira sagrada. Finalmente, olhando para a arca com profunda ternura, ela se jogou sobre aquilo que, na verdade, era um caixão fúnebre. Seus gemidos foram tão agudos que uma criança morreu.
Malcandro mandou equipar um navio ancorado no rio Fedros e ordenou que seu filho mais velho servisse à deusa. No momento em que a arca foi içada até a ponte do navio, um vento violento começou a soprar. Irritada, quando o navio chegou a largo, a deusa secou o leito do rio que engrossava suas águas.
No mar, as correntes lhes foram favoráveis, e logo eles alcançaram a costa do Egito. Seguida pelo príncipe, Ísis empreendeu uma caminhada longa e penosa, até depositar a arca num lugar deserto. A deusa despregou a tampa e a levantou. Rosto fino e pele morena, Osíris jazia dentro da arca, de olhos fechados, sem respirar. Então, debruçando-se sobre o “ser bom”, Ísis pousou seus lábios nos lábios do deus morto, unindo-se mais uma vez a ele com esse beijo. Ficou ali durante muito tempo, contemplando o rosto amado.
Ao se levantar, viu o filho do rei Malcandro ali perto. Ele ousara olhar! Cheia de cólera, tornando-se feroz e impiedosa, Ísis lançou-lhe um olhar tão duro que o príncipe, aterrorizado, caiu morto. Então, entregue a seu próprio sofrimento, indiferente à sorte do príncipe de Biblos, Ísis prosseguiu seu caminho, carregando o caixão de madeira preciosa dentro do qual repousava o “ser bom”. A deusa andou, andou, até depositá-lo num lugar retirado.
Então, lançando um último olhar para a arca toda decorada, como dissera o menino de cabelos cacheados, Ísis saiu caminhando na direção de Buto, sem olhar para trás.


Esta postagem é uma contribuição de Pallas.

Um comentário:

  1. A alma do Egito é como Osíris, renasce no mundo dos mortos, mesmo estando perdida no tempo ela permanece eterna, eterna em nossos corações, em nossas mentes, sobreviveu ao tempo.
    Fico extremamente feliz por contribuir com o texto e também por ter ajudado nas fotos, mesmo sabendo que é uma réplica dos desenhos originais, foi feito com muito carinho e dedicação.

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