segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

A Primeira Primavera

A Primeira Primavera


No princípio,
O caos
Era um mar de tufo.
Sem forma, era o nada.
Eis que nas águas de tudo nasceu
A primeira divindade,
Ser vivo primordial,
Senhor Kunitokotachi,
Eterno regente das terras, das águas
E dos ares e de mais o que havia.
Simples junco solitário, que, com o tempo, gerou
Os Espíritos dos Céus, que passaram a ordenar
As mil tramóias do Caos.

Ordenaram o que seria a Terra e o firmamento,
Distribuindo as águas e distribuindo os ares.
Criaram novos seis pares de Espíritos Celestiais,
Com a missão  de governar o destino de tudo.
 
Eis que, então, se percebeu que a Terra não passava
De um mar de óleo à deriva flutuando pelo ar.
Era preciso seguir com a obra da criação.

Muitos desses Espíritos mantêm suas moradias
Nas Planícies do Céu.
Outros se foram de lá, ninguém sabe para onde.
Antes, todos ordenaram
Ao mais jovem desses pares de espíritos governantes,
Izanagi e Izanami,
Que consolidasse a Terra
(que se encontrava a deriva feito óleo flutuante)
Dando à luz todas as ilhas do Japão.

Izanagi e Izanami,
No centro de uma ponte suspensa no ar do Céu
Com uma sagrada lança,
Tanto agitaram as águas do oceano salgado,
Que estas se adensaram.

Suspensa a lança no ar, eis que dela cai a gota,
Que gera a primeira ilha, de nome
Ono-Goro-Jima.
Onde começa a história.

Izanagi e Izanami
Construíram, nesta ilha,
Uma vasta habitação e,
No centro desse lar,
No rumo do vasto Céu,
Um grande pilar de pedra,
Que é o eixo do mundo.

No mesmo instante, uma ave, pássaro abençoado,
Senhor dos prazeres do amor,
Sobrevoou o casal.

Izanagi e Izanami,
Plenamente apaixonados,
Perceberam, em seus corpos, suas doces diferenças.
Concluíram que teriam de juntá-los com fervor,
Tornando-se um corpo só,
Para prosseguir com a obra da sagrada criação.

Movidos por grande amor,
Os dois giraram em torno do vasto eixo do mundo,
Da esquerda para a direita
Foi o rum de Izanagi.
Da direita para a esquerda,
O rumo de Izanami.
Assim, caso se encontrassem,
Juntariam os seus corpos no prazer de ser um corpo.

Quando os dois se encontraram
Izanami exclamou:
— Oh que belo e encantador é o jovem que vem a mim!

Surpreendido, Izanagi respondeu a Izanami:
—Ah! Que bela e encantadora é a donzela que vejo e vou ao encontro dela!

Intrigado, Izanagi percebeu algo errado:
—Não é justo que a mulher fale primeiro que o homem!

Contudo, não se importaram e entraram em comunhão.
Trouxeram a luz o primeiro de seus filhos,
Conhecido por Hiruko,
Repelente sanguessuga.

Entristecido, o casal abandonou esse filho
Em um barco, no alto-mar,
Noutra era, com certeza,
É que, já purificado,
Hiruko tornou-se Ebisu, o Senhor dos Pescadores.

Izanagi e Izanami
Tiveram mais outros filhos,
Todos também perdidos.

Bastante desconsolado,
O casal foi se entender
Com os Senhores do Céu.

—Isso só acontece, quando, em vez do homem, a mulher fala primeiro! – foi o que ouviram.

E de novo os dois giraram junto do eixo do mundo.

Desta vez, Izanagi quem falou primeiro.
Depois, ouviu Izanami.
E seus corpos se juntariam.
Izanami deu à luz as Ilhas do Japão.

Também geraram espíritos.

Esta postagem é uma contribuição de Pallas.

Osíris o Ser Bom

Osíris, o Ser Bom




No céu, Rá andava de um lado para outro, espumando de raiva.
— Nut, minha querida filha, como pôde se unir a seu irmão Geb sem pedir meu consentimento? Sem me dizer uma palavra? Como foi capaz de fazer uma coisa dessa? Pois bem! Já que é assim, você nunca terá um filho! Nunca, está ouvindo? Não poderá dar à luz nem no decorrer do mês nem no decorrer do ano.
Rá voltou a subir no seu barco e desapareceu no ocidente, para fazer sua viagem noturna de doze horas. Nut foi tomada por uma tristeza profunda e começou a chorar. Então o deus Tot, calculador do tempo e senhor do calendário, veio encostar sua cabeça de íbis no ombro de Nut.
—Ouvi tudo – ele murmurou com ternura. – Não se preocupe, vou tentar dar um jeito.
Levando o bico fino, curvo e comprido, Tot dirigiu-se à Lua, que era o olho direito de Hórus o falcão divino.
— Você parece meio aborrecida. Quer jogar dados comigo? Tive uma idéia: para o jogo ficar mais interessante, vamos fazer uma aposta. Cada vez que eu ganhar uma partida, você me dará um setenta e dois avos do seu brilho. Se eu perder...
A Lua sorriu. Até então, nunca ninguém tinha conseguido ganhar dela. Pobre Tot, Ela ia depená-lo. Então, como era uma boa princesa, aceitou, para agradar a Tot.
— Tudo bem, aceito o desafio. Vamos jogar. Como sou invencível, não exigirei nada pelas partidas que eu vencer, senão você acabaria perdendo tudo o que tem. Não tenho medo de ninguém.
Os dados rolaram muitas vezes sobre o tapete preto. Tot ganhou a partida e a Lua franziu a testa. Tot ganhou a segunda e a Lua ficou nervosa. Eles jogaram, jogaram, até que o olho esquerdo de Hórus escureceu.
- Vou parar – disse a Lua – Você ganhou de mim cinco vezes seguidas. Chega. Leve os cinco setenta e dois avos do meu brilho a que tem direito.
—Obrigado – disse Tot.
Com o brilho que ganhou, o deus do calendário fez cinco novos dias. Ele os colocou à parte, no final dos doze meses e trinta que formava seu ano egípcio naquela época. Além de aperfeiçoar o tempo, Tot permitiu que Nut escapasse da maldição de Rá. Nut deu a luz sete vezes seguidas.
Osíris veio ao mundo na primeira manhã dos cinco novos dias adicionais. Enquanto ele nacia, ouviu-se uma voz estranha:
— Quem está ao mundo é o senhor das coisas.
No mesmo instante, em Tebas, a cidade de cem portas, um certo Pamiles, que eu tinha ido buscar água no tempo de Amon, parou estarrecido. Embora estivesse sozinho, ouviu uma voz murmurando em seu ouvido. A voz, sem boca nem corpo, ordenou que ele bradasse:
—Acaba de nascer o grande rei, o benfeitor Osíris.
O homem obedeceu, anunciando o feliz acontecimento e voz alto. Então Geb, deus da terra, lhe confiou seu filho. Pamiles encarregou-se de educar Osíris e criou uma festa em sua honra. Nessa festa, cada um engoliria um porco diante de sua porta, e depois as mulheres sairiam em procissão pelas aldeias, tendo à frente um tocador de flauta.
No segundo dia nasceu Haroéris, criança divina com cabeça de falcão.
No terceiro dia, Nut deu um grito de dor. Era Set que estava nascendo. Em vez de nascer pelo caminho natural, ele rasgou violentamente o flanco da mãe para sair por ele.
Nut foi se refugiar num pântano e ficou esperando o dia seguinte com muito medo. Mas Ísis veio ao mundo tranquilamente, do modo mais natural possível. Finalmente, ao amanhecer do último dia adicional, Néftis veio se juntar aos três irmãos e à irmã.
Assim nasceram os cinco filhos da união de Nut e Geb. Rá se enterneceu ao ver seus descendentes e sua cólera se aplacou. Emocionado, ele até verteu algumas lágrimas. Ao caírem no chão, as lágrimas do pássaro-sol se transformaram em abelhas, insetos que produzem a cera e o mel, tão úteis aos homens.
O tempo foi passando. As crianças cresceram. Haroéris, solitário, exilou-se na cidade de Nubit. Set casou-se co Néftis. Osíris e Ísis casaram-se apenas formalmente. Fazia muito tempo que eram apaixonados um pelo outro e na verdade já tinham se unido no ventre de sua mãe.
Rosto fino, pele morena, alto e majestoso, Osíris subiu ao trono. Então tudo mudou na terra do Egito. O rei deu aos egípcios leis sensatas e ensinou-os a venerar os deuses. Ele era inteligente, bondoso e contava sempre com a ajuda da generosa Ísis.
Antigamente os seres humanos viviam como animais selvagens, ou ainda pior, pois devoravam uns aos outros. Com tranqüilidade e firmeza, Osíris fez com que abandonassem esse costume. Ísis descobriu o uso dos cereais, como o trigo e a cevada. Até então, os homens não distinguiam essas plantas das outras e não pensavam em cultiva-as. Osíris incentivou-os a lavrarem a terra para que o trigo crescesse em abundância. Ensinou-os a usas a cevada para alimentar os porcos e as aves e também para fazer cerveja, bebida apreciada por seu sabor e aroma.
Mas não foi só. O rei descobriu a vinha no território de Nisa. Esmagando a uva, saboreou a delícia do vinho e deu a receita aos homens. Revelou aos egípcios que em seu solo havia ouro e outros metais. Mostrou-lhes onde estavam os filões e ensinou-lhes a maneira de trabalhar o bronze, de fazer armas para se defender conta os animais ferozes, de fabricar ferramentas e instrumentos agrícolas, de moldar e fundir estátuas dos deuses.
A rainha Ísis, por sua vez, era estimada por seu senso de justiça. Com seu poder de magia, afastava os demônios e se enfurecia contra quem maltratava as crianças. Era terna e carinhosa. Conseguia estar pr3sente em todos os lugares ao mesmo tempo, cuidando de tudo e de todos. Ensinava as mulheres a moer o trigo, a fazer o pão, a tecer o pano e alvejá-lo.
Tot, o deus com cabeça de íbis, estava sempre ao lado de Osíris e Ísis, ajudando-os a governar. Calcular as horas e os dias era apenas uma de suas habilidades. Foi ele que inventou a escrita e a leitura, ao transformar em sinais as palavras que eram pronunciadas. Registrava nos rolos de papiro os pensamentos que lhe eram confiados, as histórias que ouvia e via, passando todos esses conhecimentos às gerações futuras. Às vezes, ele se despojava de sua plumagem de íbis e assumia a forma de babuíno. Por sua inteligência e seu conhecimento, Tot era venerado pelos sacerdotes e letrados. Era considerado deus da sabedoria e patrono dos escribas.
Certo dia, com um imenso exército, Osíris saiu percorrendo várias regiões da terra, ensinado a seus povos as técnicas da agricultura e revelando as alegrias proporcionadas pelo consumo moderado de vinho. Era uma expedição de paz. Dançarinos e músicos acompanhavam o deus, e por toda parte ele era recebido como benfeitor. Em seu séquito, o rei contava com gente prudente. Tinha como aliados o cão selvagem Anúbis, de cabeça preta e orelhas pontudas, e o lobo Upuaut.
Durante sua ausência, Ísis reinou com muita justiça, vigilante e firme, mantendo as coisas em ordem e harmonia, como Osíris as deixara.
Tudo era felicidade, até que chegou o décimo terceiro dia de um mês de Pert ao longo do qual o olho de Sekhmet podia se enfurecer e lançar terríveis epidemias. O Sol caminhava no céu azul e límpido, mas de repente o vento vermelho do deserto começou a soprar, arrancando as folhas das árvores. Antes tudo era sorrisos e perfeição.  Mas então o Nilo desapareceu e deixou a Terra seca. As noites se alongaram, a luz se enfraqueceu, quase se apagou.
Nascido na terceira manhã dos dias adicionais, Set, de pele branca e cabelos ruivos, permanecera sempre à sombra de Osíris. Ele tinha ciúmes da estima do povo pelo rei, invejava as qualidades do irmão e tinha raiva de não ser o Senhor do Egito. Aliás, o mal se manifestar nele desde seu nascimento, quando havia dilacerado cruelmente o flanco de sua mãe. Finalmente, Set se enfureceu definitivamente quando o povo do Egito passou a chamar Osíris de Unnefer, “o ser bom”, em reconhecimento ao seu empenho na salvação de todos os homens.
Então Osíris voltou, à frente de seu imenso exército, glorificado pelas vitórias pacíficas obtidas em solo estrangeiro. Set o recebeu de braços abertos.
— Estou feliz com sua volta, meu irmão. Para comemorar esse acontecimento, organizei um banquete conforme você merece. Espero-o esta noite em meu palácio.
Set deu um abraço apertado em Osíris, para avaliar disfarçadamente o tamanho do irmão. Ao longo do dia, mandou fazer sob medida uma arca de madeira preciosa, ricamente entalhada.
Osíris foi cumprimentar Ísis, feliz por reencontrá-la. Contou-lhe rapidamente a história sobre os acontecimentos de suas conquistas e perguntou-lhe sobre os acontecimentos sobre nas terras do Egito. Depois dirigiu-se ao palácio de Set. Encontrou no salão de recepção e parou, surpreso. Acompanhando o irmão setenta e dois homens e uma mulher. Com seus olhos de gavião, contou-os num instante.
—Apresento-lhe meus fiéis servidores – disse Set – E esta é Aso, rainha da Etiópia.
Sentaram-se todos em torno da mesa imensa para se banquetear. No meio da refeição, subitamente Set bateu palmas. Na mesma hora alguns criados trouxeram a preciosa arca de madeira. Todos elogiaram o móvel e louvaram a beleza de sua decoração.
Sorrindo, Set prometeu dar a arca a quem, deitando-se dentro dela, ocupasse exatamente todo o seu espaço. Um por um, todos os convivas experimentaram, mas nenhum deles era exatamente do tamanho exato da arca. Finalmente chegou a vez de Osíris. Mas, assim que ele se deitou dentro da arca, os setenta e dois convivas se precipitaram, fecharam e pregaram sua tampa a martelaram e a lacraram com chumbo derretido. Depois a levaram até o Nilo e a jogaram dentro do rio.
Isso aconteceu no dia dezessete do mês Atir, quando o Sol passa sob o signo de escorpião. Osíris reinava vinte e oito anos, e Hapi, o espírito do rio, nem suspeitou que estava levando o corpo do rei para o mar, O Grande Verde.
A notícia do desaparecimento do “ser bom” se espalhou muito depressa por todo o Egito. O terror tomou conta dos homens. Os deuses amigos de Osíris, temendo padecer uma triste sorte, imediatamente se dissimularam sob a forma de animais.
Ísis rasgou suas roupas. Chorou de dor, invocando o testemunho dos céus e cobrindo o rosto de lama. Depois, calou-se, vestiu roupas de luto e cortou uma madeixa de seus cabelos. Seus olhos fitavam o nada. Algumas horas antes seu amado ainda estava a seu lado, de volta de uma longa ausência, glorioso e sorridente. Agora, coma angústia lhe retorcendo o ventre, o coração apertado, Ísis sentia-se enlouquecer, tomada pelo amargura.
Então a rainha saiu à procura de pistas do marido, interrogando viajantes e habitantes das aldeias. As crianças apostavam corrida caminhando de joelhos, com as pernas cruzadas, segurando os pés com as mãos. Ela não teve dificuldade em alcançá-las. Então perguntou:
— Por acaso vocês viram uns homens carregando uma arca?
Uma criança, se levantou e disse:
—  Outra noite, vi uns homens com uma arca imensa. Era muito pesada, eles faziam muita força para carregá-la.
— Como conseguiu enxergá-los no escuro?
— Era noite de lua cheia. A arca era toda decorada. Eles a jogaram lá embaixo, no braço do rio que vai para o Grande Verde, por Tânis. Eu estava brincando aqui fora e vi tudo.
Ísis acariciou o cabelo moreno e cacheado do menino.
— Obrigada. Ah, maldito seja esse braço do Nilo! E benditas sejam as vozes das crianças! O touro Ápis é um excelente adivinho, no entanto quem vem fazer suas preces aos deus e interrogá-lo sobre o futuro recebe a resposta da boca das crianças que brincam e dançam ao  som da flauta.
Ísis deixou as crianças entregues à brincadeira e continuou caminhada, mas agora já não andava ao acaso. Depois que ouvira o menino de cachos morenos, ela via melilotos, a planta de flores amarelas favorita de Osíris, e seu perfume guiava seus passos. Ísis andou por muito tempo. Seu caminho acompanhava o mar e montanhas se erguiam a direita.
Certo dia, um vento divino sussurrou ao seu ouvido. Se, corpo nem lábios, a voz falou:
— Você está no caminho certo. Continue até Biblos, sem perda de tempo. Lá encontrará o que está procurando. As ondas do mar carregaram a arca e a depositaram ao pé de uma Tamargueira. A partir de então, o arbusto de flores cor-de-rosa se desenvolveu com rapidez admirável, envolvendo a arca e dissimulado-a no interior de sua madeira. Maravilhado, Malcandro, rei daquelas terras, ordenou que cortassem o tronco da tamargueira para transformá-lo numa coluna ornamental em seu palácio. Portanto trate de se apressar!
Ísis chegou exausta a Biblos. Chorando, sentou-se perto de uma fonte. Como poderia aproximar-se do rei para falar com ele? Enquanto refletia, passaram as criadas da rainha. Ísis se levantou, aproximou-se delas, cumprimentou-as e ofereceu-se para ajeitar e trançar seus cabelos. Depois de penteá-las, Ísis impregnou o corpo das mulheres com o aroma que se desprendia de seu corpo. Era um perfume divino, composto por dezesseis substâncias, entre as quais mel e vinho, menta e canela, hena e mimosa.
Ao ver suas criadas voltarem com lindos penteados e inebriada pelo perfume que exalavam, a rainha as interrogou. Elas falaram tanto da estrangeira, que a rainha mandou buscar Ísis. Encantada, fez dela sua amiga de verdade e encarregou-a da criação de seu filho caçula.
Ísis cuidou carinhosamente do menino. Amamentava-o pondo-lhe o dedo na boca. À noite, queimava o que havia de mortal em seu corpo. Quando o principezinho adormecia profundamente, Ísis tomava a forma de uma andorinha, ia até o palácio real e, gemendo, voava em torno da coluna ornamental na qual estava Osíris.
Certa noite, tomada pela insônia, a rainha foi até o quarto da criança. Horrorizada, viu saírem chamas do  corpo de seu filho, enquanto Ísis soprava para atiçar o fogo. A mãe, ao invés de se calar, soltou um grito, interrompendo assim a ação benéfica de Ísis.
— O que você está fazendo, desgraçada? E eu que confiava tanto em você...
— Estava fazendo um bem, queimando o que havia de mortal nessa criança. Mas você duvidou de mim, e seu filho não será eterno. Agora veja quem sou.
Ísis assumiu sua aparência de deusa, e a rainha se prosternou:
— O que posso fazer por você? Farei tudo o que ordenar.
— só quero o que está dentro da coluna ornamental do palácio real – foi à resposta.
Honrado coma presença divina, o rei apressou-se em atender ao desejo de Ísis. Então, ela própria rachou o tronco de tamargueira para tirar a arca de dentro dele. Depois, envolveu-o num pano fino, perfumou-o e devolveu ao casal real para que o povo de Biblos venerasse aquele pedaço de madeira sagrada. Finalmente, olhando para a arca com profunda ternura, ela se jogou sobre aquilo que, na verdade, era um caixão fúnebre. Seus gemidos foram tão agudos que uma criança morreu.
Malcandro mandou equipar um navio ancorado no rio Fedros e ordenou que seu filho mais velho servisse à deusa. No momento em que a arca foi içada até a ponte do navio, um vento violento começou a soprar. Irritada, quando o navio chegou a largo, a deusa secou o leito do rio que engrossava suas águas.
No mar, as correntes lhes foram favoráveis, e logo eles alcançaram a costa do Egito. Seguida pelo príncipe, Ísis empreendeu uma caminhada longa e penosa, até depositar a arca num lugar deserto. A deusa despregou a tampa e a levantou. Rosto fino e pele morena, Osíris jazia dentro da arca, de olhos fechados, sem respirar. Então, debruçando-se sobre o “ser bom”, Ísis pousou seus lábios nos lábios do deus morto, unindo-se mais uma vez a ele com esse beijo. Ficou ali durante muito tempo, contemplando o rosto amado.
Ao se levantar, viu o filho do rei Malcandro ali perto. Ele ousara olhar! Cheia de cólera, tornando-se feroz e impiedosa, Ísis lançou-lhe um olhar tão duro que o príncipe, aterrorizado, caiu morto. Então, entregue a seu próprio sofrimento, indiferente à sorte do príncipe de Biblos, Ísis prosseguiu seu caminho, carregando o caixão de madeira preciosa dentro do qual repousava o “ser bom”. A deusa andou, andou, até depositá-lo num lugar retirado.
Então, lançando um último olhar para a arca toda decorada, como dissera o menino de cabelos cacheados, Ísis saiu caminhando na direção de Buto, sem olhar para trás.


Esta postagem é uma contribuição de Pallas.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Netuno e os Lenhadores

Netuno e os Lenhadores





Dizem que, há muitos anos, um lenhador rachava lenha na beira de um rio. De repente, o machado com que trabalhava escapuliu de suas mãos e caiu na água. Ele procurou, mas não conseguiu achar. Muito infeliz, sentou-se numa pedra e começou a chorar:




—Ai, o que vai ser de mim agora? Sem a minha ferramenta de trabalho, como posso trabalhar e sustentar minha família?

Então, nas águas forma-se um rebuliço, e delas surgem o Senhor dos oceanos em pessoa, ele havia ouvido seus lamentos e viera ajudá-lo.

—Não chore – dissen Netuno. – Eu acabo de encontrar o seu machado. Não é este aqui?

Dizendo isso, o deus botou a mão dentro d’água e retirou lá de dentro um magnífico machado de ouro.

—Não, senhor... – respondeu o lenhador. – Meu machado é muito mais simples.

Netuno depositou com cuidado a ferramenta na margem do rio. Em seguida, mergulhou e voltou trazendo outro machado. Desta vez, todo de prata. Sorrindo, falou:

—Claro, como é que eu pude me confundir assim? O machado que você perdeu é esse aqui, evidentemente.



O lenhador ficou até sem jeito de contradizer um senhor tão distinto, de aparência tão majestosa. Nem desconfiava que era o próprio deus Júpiter. Mas criou coragem e afirmou:

Desculpe, mas também não é este. O meu machado é velho, de cabo de madeira, e está um pouquinho enferrujado. Só serve para fazer lenha.

Então o deus guardou o machado de prata junto ao de ouro, na margem do rio, e mergulhou outra vez. Quando voltou, mostrou ao homem a sua ferramenta velha. Ele agradeceu, todo feliz:

Isso mesmo! Que bom que o senhor encontrou! É esse aí... muito obrigado...

Satisfeito com a honestidade do lenhador, Netuno lhe disse:

—Pois então pode ficar também com os outros dois machados. Faça com eles o que quiser. São seus, eu lhe dou de presente.

E desapareceu, tão misteriosamente como tinha surgido.

O homem saiu dali saltitante, de tão contente. Só não pulava mais porque estava carregando o peso daquele tesouro.

Logo adiante encontrou um grupo de colegas, que ficaram espantadíssimos por vê-lo com todo aquele ouro e aquela prata nas mãos. O lenhador contou o que tinha acontecido.

Um deles, metido a esperto, deixou os amigos ouvindo a conversa e foi saindo de mansinho em direção ao rio.

Quando chegou ao local onde o amigo dissera que tinha perdido o machado, fingiu que sua ferramenta também tinha escorregado de sua mão e a deixou cair na água. Na mesma hora, sentou-se na pedra ao lado e começou a chorar, aos berros, fazendo o maior escândalo:

—Ai de mim! Sou um desgraçado! Perdi meu machado e agora não posso mais trabalhar!

Como ele esperava, logo surgiu Netuno e lhe estendeu um machado de ouro.

—Que bom que o senhor achou! É esse mesmo! – disse ele parando de chorar e estendendo a mão para pegar o cabo da ferramenta.

Mas Netuno ficou tão zangado com a ganância e a falta de honestidade dele, que jogou o machado de ouro no fundo do rio e ainda fez a correnteza ficar tão forte que carregou para sempre o verdadeiro machado do lenhador.



Essa postagem é uma contribuição de Pallas.

Eco e Narciso

Eco e Narciso




Eco era o nome de uma ninfa muito tagarela, que conversava muito e sem pensar. Não conseguia ouvir em silêncio quando alguém estava falando. Sempre se intrometia e interrompia, nem que fosse para concordar e repetir o que o outro dizia. Um dia, fez isso com a ciumenta deusa Juno, quando ela andava pelos bosques furiosa, procurando o marido Júpiter, que brincava com as ninfas. A tagarelice de Eco atrasou a poderosa Juno, que resolveu:
— De agora em diante, sua língua só vai servir para o mínimo possível.

E a partir desse dia, a coitada da Eco só podia mesmo repetir as últimas palavras do que alguém dissesse. Sua voz deixou de expressar suas próprias palavras.

Por isso, algum tempo depois, quando ela viu um rapaz belíssimo e se apaixonou por ele, tratou de ir atrás sem dizer nada, em silêncio. Esse rapaz se chamava Narciso e dizem que foi o homem mais bonito e deslumbrante que já existiu. Todo mundo se enamorava dele, que nem ligava.

Eco ficou louca por Narciso e o seguia por toda parte. Bem que tinha vontade de se aproximar e confessar seu amor, mas não tinha mais que a própria fala, não podia enunciar seus pensamentos e sentimentos... Só lhe restava ficar escondida, por perto, esperando que ele dissesse alguma coisa que ela pudesse repetir.

Um dia, o belo Narciso estava passeando no bosque com uns amigos, mas se perdeu do grupo e não conseguiu encontrá-los. Começo então a chamá-los:

—Tem alguém aí?

Era a chance da ninfa! E, ela logo respondeu, ainda escondida:

—Aqui! Aqui!

Espantado, Narciso olhou em volta e não viu ninguém. Chamou:

—Vem cá!

E ela repetiu:

—Vem cá! Vem cá!

Não vendo ninguém, ele perguntou:

—Por que me evita?

—Por que me evita? – foi a única resposta que ouviu.

O rapaz não desistiu:

—Vamos nos encontrar...

Toda feliz, Eco saiu do meio das árvores e correu para abraçá-lo, repetindo:

—Vamos nos encontrar...

Mas ele fugiu dela, gritando:

— Pare com isso! Prefiro a morte a deixar que você me toque!

A pobre Eco só podia repetir:

—Que você me toque... Que você me toque...

E saiu correndo, triste e envergonhada, para se esconder no fundo de uma caverna. Sofreu tanto com essa dor de amor, que foi emagrecendo, definhando, até perder o corpo, desaparecer por completo e ficar reduzida apenas a uma voz, repetindo as palavras dos outros – isso que nós chamamos de eco.

Narciso continuou sua vida, sempre da mesma maneira. Sem ligar para ninguém, nunca se importando com os outros, brincando com os sentimentos alheios. Até que alguém, que ele fez sofrer muito, rezou para Nêmesis, a Deusa do Destino, e pediu:

—Que ele possa amar alguém tanto quanto nós o amamos! E que também seja impossível que ele conquiste seu amor!

Nêmesis ouviu essa oração. Achou que era justa e resolveu atender ao pedido.


Havia no fundo do bosque um laguinho de águas cristalinas e tranqüilas, onde nunca vinha um animal beber água e não caíam folhas ou galhos secos - um verdadeiro espelho. Era cercado por uma grama verdinha e macia. Um lugar muito fresco e agradável. Um dia, no meio de uma caçada, Narciso passou por ali. Com sede, resolveu tomar um pouco de água. Deitado na margem. Com a cabeça inclinada sobre o lago, ficou encantado pela belíssima imagem que via. Nunca tinha se visto num espelho e não sabia que era sua própria imagem que via. Imediatamente se apaixonou, maravilhado por tanta beleza. Ficou ali parado, contemplando aquele rosto mais bonito do que o de qualquer estátua de mármore que jamais vira. Suspirava, extasiado diante daqueles olhos brilhantes como estrelas. Admirava o pescoço elegante, o rosto adorável, os cachos abundantes do cabelo, emoldurando um rosto de proporções perfeitas incomparáveis. Nem mesmo um deus poderia ser tão belo!

Os amigos apareceram para procurá-lo, mas ele não deu atenção. Chamaram-no para ir embora, mas ele ficou. Olhando o reflexo no lago.

Quando sorria, aquela criatura divina lhe sorria ao mesmo tempo. Quando aproximava os lábios da superfície, via que o outro rosto também chegava mais perto, preparando um beijo. Mas, as se tocarem, o outro rosto sumia e só ficava água. Mergulhou os braços na água, tentando puxar para si aquele pescoço, trazer aquele corpo para seu abraço. Mas tudo se devolvia.

Muito tempo Narciso ficou ali, sem comer nem dormir, admirando aquele ser por quem estava apaixonado. Chorou – e suas lágrimas caíram sobre a imagem, que chorava com ele, e ficou turva.

— Ai de mim! – gemia ele.

A única resposta que tinha era de Eco, sempre escondida:

—Ai de mim!

Consumindo-se de amor, sem conseguir sair dali, Narciso ficou desesperado, rasgou suas vestes, se arranhou todo, puxou os próprios cabelos. Na água, a imagem fazia o mesmo. Mas ele não podia agarrá-la. Nem tinha forças para prestar atenção em mais nada que não fosse aquele rosto refletido no lago.

Desinteressado de tudo, cada vez mais fascindo por si mesmo, foi definhando. Ao perceber que ia morrer, suspirou:

—Adeus! Adeus

Fechou os olhos, deixou cair a cabeça sobre a grama. Na água o rosto sumiu. Só Eco respondeu:

—ADEUS!

Mais tarde, os amigos voltaram. Mas já o encontraram morto. Prepararam tudo para o funeral, e, quando vieram buscar o corpo, ele não estava mais lá. Em seu lugar nascera uma flor branca perfumada e linda, com uma estrela de pétalas brancas em volta de um miolo amarelo. Para sempre chamada de Narciso.



Esta Postagem é uma contribuição de Pallas.

Píramos e Tisbe

Píramo e Tisbe




Há muitos e muitos anos, vivia na babilônia um rapaz chamado Píramo, o mais belo dos jovens de seu tempo. Bem ao lado da casa dele, separada apenas por muro, vivia Tisbe, a mais linda jovem do oriente. Sendo vizinhos, acabaram se encontrando e ficando amigos. Mais que isso, em pouco tempo aquela amizade virou amor e começaram a falar em casamento. Acontece, porém, que as famílias não queriam aquela união e proibiram o namoro. Os dois não podiam se falar. Como não tinham um aliado ou confidente que pudesse levar seus recados e ajudá-los, foram desenvolvendo uma linguagem de sinais e acenos. Quanto mais se ocultavam, mais o amor escondido ardia e abrasava.

No muro que separava os dois quintais havia uma rachadura, que tinha virado uma fresta. Tão apertada que passara despercebida de todos. Mas nada escapa aos olhos dos apaixonados! Píramo e Tisbe descobriram essa fresta e logo notaram que podia ser um canal para suas vozes. Píramo parava de um lado, Tisbe do outro, e começavam a ouvir a respiração do ser amado ali pertinho. Daí a pouco sussurrando:
-Muro, muro, deixe de ser ciumento... não fique no caminho dos que se ama! Por que não deixa que a gente se abrace?
-Por favor, muro, se abra mais, para podermos nos beijar...
Passavam o dia todo murmurando ao lado do paredão. De noite, se despediam e beijavam as pedras do muro.
Certa manhã, quando a aurora apagara o fogo das estrelas, e os raios do sol já tinham secado o orvalho da noite, os dois chegaram ao ponto de encontro e, como sempre, começaram a suspirar. Mas estavam muito tristes. Seus lamentos foram ficando cada vez mais sofridos. Não estavam agüentando mais. Por isso, acabaram resolvendo que naquela noite, cada um tentaria esgueirar-se, passar pelos guardas e escapulir da casa. Depois que fugissem, iriam encontrar-se fora da cidade. Para não se perderem, marcaram um encontro junto a um túmulo que havia no campo, ao lado de uma imensa amoreira – porque a sombra da árvore podia ajudar a escondê-los, no caso de eventuais olhares indiscretos. E, como bem pertinho havia uma fonte de água fresca, seria um lugar perfeito para uma espera.

Quando a noite chegou, Tisbe conseguiu abrir a porta e sair com facilidade, sem que ninguém a visse. Envolta num véu, chegou ao local combinado e sentou-se debaixo da amoreira, cujos frutos nesse tempo eram branquinhos como a neve e brilhavam sob a lua. Mas daí a pouco, apareceu uma loa que acabava de caçar e, ainda com boca gotejando sangue, vinha beber água na fonte. À luz do luar, Tisbe viu o animal se aproximando e correu para se abrigar numa caverna próxima. Na corrida, deixou cair o véu. A leoa encontrou o tecido e avançou sobre ele, rasgando o pano e deixando todo sujo de sangue. Depois, bebeu água e foi embora.

Píramo só conseguiu chegar um pouco mais tarde. Viu as pegadas e ficou pálido. Pior ainda, viu o véu de Tisbe estraçalhado e ensangüentado. Desesperou-se. Achou-se que Tisbe tinha sido devorada por um leão e a culpa era dele, que a convencera a ir sozinha de noite a um lugar perigoso e não conseguira chegar a tempopara estar lá a sua espera. Chorando, abraçado ao véu de Tisbe, sacou a espada e a enterrou no próprio peito. O sangue jorrou longe e abundante, e esguichou sobre a raiz da amoreira e sobre as amoras, que foram tingidas por aquela cor púrpura
.

Ansiosa para não desapontar seu amado, Tisbe voltou, olhando em volta à procura dele, e louca para lhe contar sua aventura e o perigo de que tinha escapado. Quando viu príamo no chão coberto de sangue, no chão, morto, ficou fora de si. Batia no próprio peito, arrancava os cabelos, lavava o sangue dele com lágrimas, beijava o rosto frio. Ao distinguir que as mãos do rapaz seguravam seu véu rasgado e a espada estava fora da bainha, percebeu o que ocorrera. Segurou então a espada com firmeza e se lançou sobre ela para morrer também, no aço ainda quente do corpo amado. Com tristeza, os deuses guardaram para sempre a lembrança dos dois nos frutos da amoreira – cor de sangue antes de amadurecer, e pretos de luto no apogeu da doçura, quando ficam no ponto para serem colhidos. E, ao amanhecer, as duas famílias, finalmente, constatando a que ponto sua intransigência tinha levado os dois namorados, conseguiram as cinzas na mesma urna.



Esta postagem é uma contribuição de Pallas.

Apolo e Dafne

Apolo e Dafne



Apolo e Dafne

 Dafne foi o primeiro amor de Apolo.
 Não surgiu por acaso, mas pela malícia de Cupido.Apolo viu o menino brincando com seu arco e suas setas e, estando ele próprio muito envaidecido com sua recente vitória sobre Píton, disse-lhe:
— Que tens a fazer com armas mortíferas, menino insolente? Deixe-as para as mãos de quem delas sejam dignos. Vê a vitória que com elas alcancei, contra a vasta serpente que estendia o corpo venenoso por grande extensão da planície! Contenta-te com tua tocha, criança, e atiça tua chama, como costumas dizer, mas não te atrevas a intrometer-te com minhas armas.

O filho de Afrodite ouviu essas palavras e retrucou:
— Tuas setas podem ferir todas as outras coisas, Apolo, mas as minhas podem ferir-te.
Assim dizendo, pôs-se de pé numa rocha do Parnaso e tirou da aljava duas setas diferentes, uma feita para atrair o amor; outra, para afastá-lo. A primeira era de ouro e tinha a ponta aguçada, a segunda, de ponta rombuda, era de chumbo. Com a seta de ponta de chumbo, feriu a ninfa Dafne, filha do rio-deus Peneu, e com a de ouro feriu Apolo no coração. Sem demora, o deus foi tomado de amor pela donzela e esta sentiu horror à idéia de amar. Seu prazer consistia nas caminhadas pelos bosques e na caça. Muitos amantes a buscavam, mas ela recusava a todos, passeando pelos bosques, sem pensar em Cupido nem em Himeneu.
Cupido
  Seu pai muitas vezes lhe dizia: "Filha, deves dar-me um genro, dar-me netos." Temendo o casamento como a um crime, com as belas faces coradas, ela se abraçou ao pai, implorando: "Concede esta graça, pai querido! Faze com que eu não me case jamais!"
  A contragosto, ele consentiu, observando, ao mesmo tempo, porém: — O teu próprio rosto é contrário a este voto.
Apolo amou-a e lutou para obtê-la; ele, que era o oráculo de todo o mundo, não foi bastante sábio para prever o seu próprio destino. Vendo os cabelos caírem desordenados pelos ombros da ninfa, imaginou: "Se são tão belos em desordem, como deverão ser quando arranjados?" Viu seus olhos brilharem como estrelas; viu seus lábios, e não se deu por satisfeito só em vê-los. Admirou suas mãos e os braços, nus até os ombros, e tudo que estava escondido da vista imaginou mais belo ainda. Seguiu-a; ela fugiu, mais rápida que o vento, e não se retardou um momento ante suas súplicas. — Pára, filha de Peneu! — ele exclamou. Não sou um inimigo. Não fujas de mim, como a ovelha foge do lobo, ou a pomba do milhafre. É por amor que te persigo. Sofro de medo que, por minha culpa, caias e te machuques nestas pedras. Não corras tão depressa, peço-te, e correrei também mais devagar. Não sou um homem rude, um campônio boçal. Júpiter é meu pai, sou senhor de Delfos e Tenedos e conheço todas as coisas, presentes e futuras. Sou o deus do canto e da lira. Minhas setas voam certeiras para o alvo. Mas, ah!, uma seta mais fatal que as minhas atravessou-me o coração! Sou o deus da medicina e conheço a virtude de todas as plantas medicinais.
Apolo e Dafne
Ah! Sofro de uma enfermidade que bálsamo algum pode curar! A ninfa continuou sua fuga, nem ouvindo de todo a súplica do deus. E, mesmo ao fugir, ela o encantava. O vento agitava-lhe as vestes e os cabelos desatados lhe caíam pelas costas. O deus sentiu-se impaciente ao ver desprezados os seus rogos e, excitado por Cupido, diminuiu a distância que o separava da jovem. Era como um cão perseguindo uma lebre, com a boca aberta, pronto para apanhá-la, enquanto o débil animal avança, escapando no último momento. Assim voavam o deus e a virgem: ela com as asas do medo; ele com as do amor. O perseguidor é mais rápido, porém, e adianta-se na carreira: sua respiração ofegante, já atinge os cabelos da ninfa. As forças de Dafne começam a fraquejar e, prestes a cair, ela invoca seu pai, o rio-deus: — Ajuda-me, Peneu! Abre a terra para envolver-me, ou muda minhas formas, que me têm sido tão fatais!
    Mal pronunciara estas palavras, um torpor lhe ganha todos os membros; seu peito começou a revestir-se de uma leve casca; seus cabelos transformaram-se em folhas; seus braços mudam-se em galhos; os pés cravam-se no chão, como raízes; seu rosto tornou-se o cimo do arbusto, nada conservando do que fora, a não ser a beleza.
  Apolo abraçou-se aos ramos da árvore e beijou ardentemente a madeira. Os ramos afastaram-se de seus lábios.
— Já que não podes ser minha esposa — exclamou o deus — serás a minha planta preferida. Usarei tuas folhas como coroa; com elas enfeitarei minha lira e minha aljava; e quando os grandes conquistadores caminharem para o descanso de glória, à frente dos cortejos triunfais, serás usada como coroas para suas frontes. E, tão eternamente jovem quanto eu próprio, também hás de ser sempre verde e tuas folhas não envelhecerão.
Apolo e Dafne, Lady Gaga, Crepúsculo, Harry Potter, Mitologia, Justin Bieber

A Origem dos Homens

A Origem dos Homens


Prometeu sempre teve um pendor para as artes plásticas. Seu pai era o velho Japeto, um dos titãs, cuja origem se perde na noite dos tempos. Era tão velho que emparelhava em idade com Cronos, o pai de Zeus, e ninguém sabia precisar direito como e de onde surgira. O fato é que o velho sempre nutrira uma admiração secreta por seu habilidoso filho.
Este Prometeu promete! – dizia, repetindo pela milésima vez esse cansativo trocadilho.
Ásia, esposa de Japeto, escutava pacientemente os prognósticos do marido, mas não podia deixar de concordar com o seu otimismo. Não raras vezes flagraram o menino metido no barro, modelando com habilidade seres das mais diversas formas.
Com o tempo, Prometeu cresceu, até atingir a fase adulta. Agora, já com seu atelier montado, era respeitado em toda a corte celestial, como notável artífice.
Um dia chegou um mensageiro todo-poderoso à sua porta dizendo:
Prometeu, Zeus decidiu criar um novo ser, sobre a Terra, de tal modo importante, que há se assemelhar em tudo aos próprios deuses.
Um deus de segunda categoria? Para quê?, perguntou o artista a sim mesmo,
Prometeu, entretanto, não opinava sobre as tarefas que recebia, mas procurava tão somente cumpri-las da melhor maneira possível.
Assim sendo, aceitou imediatamente a incumbência. No mesmo dia encerrou-se em sua oficina, depois de colocar um aviso bem grande na porta destinado a afastar os importunos. Esta criação, bem o sabia, estava destinada a ser a sua obra-prima, e por esta razão decidiu caprichar ao máximo na sua elaboração.
Prometeu cria o homem
Prometeu cria o homem
Depois de trabalhar por vários dias, deu enfim por concluída a tarefa. Embrulhou a imagem do novo ser, que batizou de Homem, e já ia levando para que Atena, a sabedoria divina, lhe insuflasse a alma, quando esbarrou acidentalmente na porta, deixando cair a peça ao chão.
Abalado com o desastre, Prometeu retirou o lençol que envolvia o trabalho e viu que sua criatura perdera uma de suas três maravilhosas pernas.
Que desastre lamentável!, exclamou, desconsolado.
Mas como estivesse muito apressado, pois a data de entrega da obra havia expirado há vários dias, resolveu levá-la assim mesmo, com duas pernas apenas. A perna do meio, contudo perdera-se para sempre.
Mesmo assim, lá foi ele, orgulhoso, com sua obra-prima. Todos os deuses foram unânimes em aplaudir a sua criação. Os elogios eram como uma chuva benfazeja, de tal modo que Prometeu tomou-se mais ainda de amores pela obra.
Decidido, porém, a fazer daquela criatura um ser privilegiado, Prometeu decidiu subir até os céus e roubar ao carro do sol uma pequena chama.
- Veja!, disse ele a Atena.
- Com o domínio deste fogo, o homem será superior a todas as demais criaturas!
Os descendentes deste primeiro homem, no entanto, logo entraram em desavença com o pai supremo, Zeus.
Zeus, encolerizado, decidiu puni-los retirando dos homens o fogo, que lhes dava o calor necessário aos seus corpos desprovidos de penas ou de pêlo espesso. Deste modo o homem também ficava privado do elemento fundamental para que pudesse continuar a fabricar suas armas e ferramentas.
As forjas silenciaram em todo o mundo, e durante algum tempo as bigornas e os martelos estiveram momentaneamente pacificados.
Quando a noite descia sobre a Terra, as pessoas corriam a se envolver em suas peles, buscando o abrigo das suas cavernas geladas e escuras. Sem o fogo para cozinhar os alimentos, tiveram também os homens de retroceder ao hábito de comer alimentos crus.
Prometeu, vendo que o ser que saíra de suas mãos padecia de incríveis sofrimentos sem indagar da causa que o levara a este lamentável estado, decidiu roubar outra vez aos céus uma fagulha do divino elemento.
Cuidado, pense duas vezes antes de afrontar novamente a ira divina!, disse-lhe Atena, em tom de advertência.
Prometeu, no entanto, surdo aos avisos da deusa, preferiu correr o risco.
Aproveitando o escuro da noite, enrolou-se num manto e subiu aos céus, até onde o sol repousava de sua longa viagem. Aproximando-se pé ante pé, puxou das vestes um tição apagado e o acendeu nas costas do astro, que dormia a sono solto.
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Tapando com a mão a minúscula chama, veio de volta à Terra. Antes que o dia amanhecesse outra vez, uma imensa fogueira ardia bem no centro da Terra, onde os homens felizes, foram recolher o fogo bendito para esquentar seus corpos e fabricar outra vez suas armas e utensílios.
Mas Zeus, ao saber do fato, irou-se de vez.
Aquele maldito intrometido saiu outra vez em defesa de seus protegidos!, disse o deus, puxando os cabelos.
- Mas, desta vez, seu ultraje não ficará sem resposta!
No mesmo dia ordenou que aprisionassem Prometeu a um rochedo no Cáucaso.
Quero que ele esteja para sempre preso àquela pedra!, exclamou Zeus, furioso.
Ordenou, ainda, que soltassem sobre a região, um terrível abutre, cuja degradante função seria a de devorar, incansavelmente, o fígado de Prometeu. Assim se fez.
Em menos de um dia, Prometeu viu-se acorrentado ao imenso rochedo, enquanto um abutre de hora em hora descia para lhe comer o fígado.
Nem bem a ave nojenta terminava sua tarefa, o fígado de Prometeu reconstituía-se, milagrosamente, fazendo com que a ave insaciável retomasse a sua função, tornando, deste modo, infinito, o suplício do pobre amigo dos homens.
Durante muitos anos Prometeu esteve submetido a essa horrenda tortura, quando um dia uma voz cavernosa ecoou sobre sua cabeça:
- Aprendeu agora a lição, Prometeu?
O filho de Japeto, no entanto, virou o rosto, em sinal de desprezo.
Zeus tentou ainda comprar-lhe o silêncio, prometendo que o libertaria de seu suplício caso ele se comprometesse a esconder dos homens o segredo da obtenção do fogo.
Prometeu, mais uma vez, recusou-se a responder, pois ele não cedia nem a ameaças nem a ofertas.
Mas seu castigo, afinal teve um fim um dia.
Prometeu acorrentado - Rubens
Prometeu acorrentado - Rubens
Hércules, filho de Zeus, numa de suas inúmeras aventuras acabou matando o abutre que torturava de modo tão cruel o pobre Prometeu.
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Depois, já ia o herói arrancando-o de suas correntes quando a voz de Zeus soou:
- Isto é impossível que se faça!, disse Zeus, embora já se mostrasse disposto a perdoar o infeliz Prometeu.
- Uma vez que eu afirmei que ele jamais se separaria deste rochedo, assim terá de ser até o final dos tempos.
Hércules, sem poder ir contra a vontade do próprio pai, já se dispunha a abandonar Prometeu no rochedo, quando este, sentindo voltar toda a sua anterior esperteza disse assim ao seu algoz:
Tenho uma solução que talvez resolverá meu problema, disse ele a seu libertador, sem voltar os olhos para Zeus, mantendo com relação a ele o seu silêncio digno e ofendido.  Afinal, depois de ter o fígado roído por milhares de anos por uma ave pestilenta, não é da noite para o dia que se pode simplesmente fazer as pazes com o mandante de uma tal atrocidade.
- Rompa os elos de minhas correntes e faça com um pequeno pedaço dele um anel, disse Prometeu a Heracles.
Hércules assim o fez. Em instantes fabricou um pequeno e elegante anel.
- Ótimo!, disse Prometeu.
Depois, arrancando do grande rochedo uma minúscula pedra, soldou-a ao anel.
Pronto!, disse Prometeu.
- Agora permanecerei de qualquer modo sempre preso a este maldito rochedo.
Zeus, admirando secretamente a inteligência da vítima, preferiu silenciar e encerrar de uma vez a longa disputa.


Esta postagem é uma contribuição de Pallas.

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